Oh! que saudades que tenho
Da aurora da minha vida,
Da minha infância querida
Que os anos não trazem mais!
Casimiro de Abreu, poeta romântico brasileiro que publicou um único livro, e nele essa joia, que não chega a ser saudosista, mas é de dar saudades.
Da saudosa infância que os anos não trazem mais, guardo várias boas lembranças, e alguns traumas para felicidade do meu analista, tudo dentro de uma caixa na minha memória, uma caixa como era minha caixa de brinquedos.
Caixa onde guardava trenzinho elétrico, autorama, forte apache, estilingue, pião de madeira, alguns times de futebol de botão, bolas de meias, além de muitas, mas muitas revistas em quadrinhos, de Marvel a Disney, paixão que tenho até hoje.
Pena que essa caixa se acaba com a infância, não exatamente pela chegada da adolescência, juventude e envelhescência, mas pelo tamanho que ela tomaria.
Os brinquedos crescem com a gente: bicicletas, skates, vídeo games, chuteiras, raquetes de tênis e até revistas de mulher pelada já não cabem em uma simples caixa de brinquedos na adolescência.
E na juventude: que tamanho teria uma caixa que acomodasse todos os brinquedos presentes nessa fase cheia de aventuras, certezas incertas, sexo e rock´n roll?
A caixa de brinquedos de um sessentão, o meu caso, ocupa quase a casa toda: depósito para guardar as bicicletas, pranchas de surf, stand up..., garagem para o 4x4 e seus acessórios..., oficina para as ferramentas, biblioteca para os livros, estantes para LPs, CDs, DVDs, ... enfim, brinquedos de gente grande numa caixa imaginária que varia de pessoa para pessoa, e para algumas pessoas, essas caixas contêm até pessoas!
Mas a grande caixa de brinquedos da minha adultescência é a cozinha.
Não a cozinha como "a arte, o engenho, o conjunto de técnicas de preparo dos alimentos "segundo definição do Houaiss, mas a cozinha como "compartimento de uma residência, geralmente afastado da parte social dessa, equipado com objetos próprios para preparação de alimentos", segundo o mesmo dicionário, definição, aliás, totalmente ultrapassada, pois hoje a cozinha é, geralmente, a parte mais social da casa.
Não existem muitos relatos sobre a cozinha como cômodo de uma casa, mas intui-se que ela começou a se modelar na forma que vemos hoje, com o surgimento da agricultura, com a fixação do homem em determinadas regiões e construção de suas moradias.
Enquanto nômades, os homens se instalavam perto de fontes de alimentos, onde a caça, pesca e frutos eram abundantes, e quando os alimentos começavam a rarear em função das estações do ano ou do colapso do meio ambiente, partiam para outras regiões... nessa época a pia da cozinha era um rio e o fogão uma fogueira.
Na Grécia Antiga os quartos eram arranjados ao redor de um pátio, o átrio, e nele geralmente havia uma área, por vezes coberta, que fazia o papel de cozinha com uma fogueira ao centro e a água trazida das fontes para cozinhar e lavar.
Os gregos mais afortunados tinham a cozinha em um quarto, sempre próximo ao banheiro e ao quarto do dono da casa, pois o calor do fogo utilizado na cozinha aquecia os cômodos adjacentes.
Também era comum ter um pequeno quarto na parte de trás da casa para armazenar alimentos e utensílios: o embrião da indispensável dispensa.
Já no Império Romano, pessoas comuns não possuíram cozinhas em suas casas: amplas cozinhas públicas com o fogo aceso sobre o chão atendiam a maioria da população, que se viam obrigados a cozinhar de joelhos, como que orando.
Data-se desta época o primeiro protótipo de fogão: um móvel de bronze com espaço para a lenha que, como sempre, eram exclusividade dos romanos abastados!
O fogão mais parecido com o que temos hoje surgiu durante a revolução industrial na primeira metade do século XVIII: um móvel grande com um compartimento semifechado para o fogo e aberturas para colocar as panelas, alguns modelos ainda tinham forno e uma caldeira para ter sempre água quente.
No século XX a lenha foi substituída pelo carvão, depois para a nafta, pelo óleo e por fim pelo gás de cozinha ou GLP como conhecemos hoje.
Com a tecnologia invadindo nossas cozinhas, os brinquedos-fogões passaram a ser elétricos, por indução, com forno combinado, computadorizado, com cozimento à vapor, timer, enfim, só falta cozinhar sozinho, e muitas vezes seria mais seguro se o fizessem.
Já primeira máquina frigorifica foi criada por um australiano usando a compressão de vapor em 1856 para auxiliar no processo de fabricação da cerveja, era o inicio de uma parceria feliz que dura até hoje: cerveja e geladeira.
Mas a geladeira só foi para cozinha em 1913 com a Kelvinator e a GE Monitor-Top.
Em 1947, numa pequena oficina de Brusque, começam a ser produzidas as primeiras geladeiras brasileiras e anos mais tarde, um comerciante de Joinville convence os donos da oficina a montarem uma fábrica: a Consul, a primeira fabrica de refrigeradores do Brasil sob o comando do trio Holderegger-Stutzer-Freitag.
Se Careme, o rei dos cozinheiros, o cozinheiro dos reis Luizes da França, tivesse um brinquedo-geladeira na sua época, não precisaria organizar caravanas para trazer gelo dos Alpes para produzir suas terrines, aspics e gelatinas.
E assim gênios foram criando brinquedos para cozinha: em 1922 Stephen Poplawski finalizou a configuração clássica que caracteriza um liquidificador; em 1908 o engenheiro americano da Hobart Manufacturing Company, Herbert Johnson, criou a batedeira; o mixer, conhecido também como varinha mágica, tornou-se o símbolo da cozinha moderna americana nos anos 1960.
Outra grande revolução da cozinha foi o brinquedo forno de micro-ondas: seu inventor, Percy Spercer, percebeu que as micro-ondas produzidas pelos radares da fábrica que trabalhava derretia as barras de chocolate que costumava ter em sua mesa.
A primeira experiência de um alimento cozido por micro-ondas foram pipocas, mais uma parceria marcante nas cozinhas desde 1947 quando foi construído o primeiro forno de micro-ondas comercial pela indústria de radares Raytheon.
Hoje em dia os brinquedos de cozinha estão cada vez mais sofisticados e tecnológicos: alguns fantásticos, outros inúteis, muitos fantasiosos e a maioria pura criação de marqueteiros visando rechear a caixa de brinquedos de consumidores ávidos por novidades e banalidades.
Poucos brinquedos de cozinha são tão divertidos quanto panelas e utensílios de ferro, esmaltados ou não, produzidos artesanalmente, com ou sem grife.
Difícil a tecnologia superar a simplicidade da panela de barro para valorizar sabores!
E o que dizer da mágica cerâmica no forno ou no fogão?
A melhor tecnologia para se divertir na cozinha esta no conhecimento, nas páginas guardadas na nossa caixa de brinquedos.
As revistas de “mulher pelada” da adolescência dão lugar as revistas e livros de culinária da adultescência: revistas de coisas de comer sempre presentes na caixa de brinquedos dos meninos.
O segredo para chegar a envelhescência com a mesma alegria da infância e não esquecer nunca de renovar e alimentar a nossa caixa de brinquedos, não só com brinquedos, mas com emoções, experiências e esperança, esperança que segundo a mitologia grega, foi o único sentimento que ficou guardado em outra caixa, a caixa de Pandora,..., mas essa história fica para outra das minhas estórias.
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